domingo, 22 de agosto de 2010

CENSURA DA REFLEXÃO CRÍTICA - antiga filosofia de poder

A ENTREVISTA QUE NÃO SAIU

O jornalista é uma pessoa pensante e quis me entrevistar para um jornal local de Nova Friburgo. Gravou a entrevista - uma conversa franca e aberta, onde expresso minhas posições, com naturalidade, sobre uma variada gama de assuntos - como acho que deveriam ser todas as conversas. Transcreveu a entrevista e enviou para o jornal. O diretor do jornal se recusou a publicar "por critérios editoriais próprios".

O que nesta entrevista feriu os "critérios editoriais próprios" do jornal local?
Vou transcrevê-la abaixo, para que possam julgar por si mesmos.



O público e o privado, o tradicional e o inovador




 Gui Mallon - fotografado por ele mesmo em Paraty-RJ
                                                    

JORNAL LOCAL: Fale uma pouco sobre a visão de mundo que você desenvolveu nessa sua vivência.

Gui Mallon: Considero o mais grave e mais sério problema da nossa época - e de toda a história humana - o desafio do meioambiente. Se este desafio não for vencido, a humanidade não vai chegar ao século 22. Todos aspectos da vida humana estão relacionados com esta problemática, inclusive a arte e a cultura. O planeta tem 40 mil quilômetros de circunferência e não vai crescer. Nós temos um sistema econômico baseado no lucro e em taxas de crescimento permanentes. Estas duas coisas são matematicamente incompatíveis entre si. Sinais alarmantes de uma crise sem precedentes estão aí por todas as partes: catástrofes naturais provocadas pelo aquecimento global, instabilidade econômica e social. A arte e a cultura, neste contexto, são instrumentos para enfrentar este desafio.

JORNAL LOCAL: Como a arte e a cultura podem contribuir para a superação desse problema?

GM: Modificando a visão que temos de felicidade. Este é o aspecto cultural desta problemática, que reside no paradigma que o consumismo criou, onde TER é mais importante do que SER. A arte e a cultura podem inverter isto, formando uma nova geração que crie um novo humanismo, que volte a acreditar que ser é mais importante do que ter. Acredito que estamos caminhando para isto. Vamos conseguir enfrentar e sobreviver a crise que virá. Pois ela virá, sem dúvida, é apenas uma questão de tempo.
Muitos milhões de pessoas vão sucumbir. Hoje falamos de refugiados, na sua maioria da Africa Subsahariana, que fogem para a Europa em algumas centenas por dia. Vamos presenciar, dentro de algumas décadas, centenas de milhões de fugitivos da seca.
O Himalaia, por exemplo, está secando. Ele é como se fosse uma antena colossal que absorve água na atmosfera e distribui pelas maiores bacias hidrográficas da Asia, para cerca de 1 bilhão de pessoas na China, India, Paquistão, etc. Quando os glaciares secarem (em 2035), enfrentaremos uma crise sem precedentes.
Tal é a gravidade do problema do meioambiente que ouso dizer isto: arte e cultura que, de alguma forma, não se inspire numa alternativa ao consumismo e sua falsa visão de felicidade (raiz de nossos problemas ambientais) é LIXO. Arte inútil e perversiva. Podemos ajudar o ser humano a enxergar um modelo de felicidade, tanto individual quanto social, que inverta esses valores que damos ao ter e ao ser. Ser uma pessoa criativa e poder interagir com as pessoas com base nisto. Costumamos dizer que a felicidade é feita das coisas mais simples: o melhor da vida é grátis.

JORNAL LOCAL: Fale um pouco sobre o que é arte e o que é cultura.

GM: Existe essa grande confusão de que arte e cultura são a mesma coisa. Não é. O papel da arte é buscar o novo, inaugurar, experimentar. Cabe a cultura tipificar, distribuir.
Meu projeto Mosartes está dentro da perspectiva da macroarte do século 21, das criações coletivas. Quando cem pessoas criam uma obra juntas já se aproxima de uma tipificação. Mas, normalmente, as duas coisas são separadas. 

E, tal como o seu projeto Mosartes, existem outros campos de saber e fazer compartilhado, não é?

GM: Hoje nós temos o Creative Commons, em oposição ao Copy Right. No CC você pode pegar, transformar, reproduzir, etc. Há obras que você tem que mencionar o autor, não pode vender, outras que permitem isto.
Esta é uma nova ideologia que se contrapõe à indústria de direitos autorais, com implicações políticas profundas. É um movimento democrático, perturbador, que coloca a seguinte proposta: uma cultura feita por todos para todos. Veja o problema da soja transgênica, por exemplo. Ela tem uma patente e um mecanismo de autoexterminação em seu DNA. Imaginem; nós estamos há 15 mil anos comendo grãos que são de domínio público. Se a soja transgênica se impor, vamos ter que pagar royalties (direitos autorais) pelos grãos que comermos. Isto seria uma tragédia sem comparação na história da humanidade. A luta sobre a questão dos direitos autorais é muito complexa e é nisto que estou metido agora.
Temos duas correntes de megaesculturas coletivas hoje em dia. De um lado o Creative Commons, o sistema Linux, a Wikipedia, todos de domínio público, abertos a comunidade mundial. Do outro lado o Windows, Myspace, Facebook, Youtube, etc. O Youtube pode ser comparado a um imenso formigueiro, onde as formiguinhas trabalham de graça, colocando seus vídeos, enquanto a formiga rainha, a Google, dona da Youtube, ganha dinheiro com a publicidade. Ao mesmo tempo que existe um modelo, está presente o outro, em que alguns poucos ganham. Aí está a grande frente da batalha cultural, na qual está em jogo a ideia de um novo humanismo e da própria sobrevivência da humanidade.

JORNAL LOCAL: Trazendo nossa conversa para a localidade, aqui em Nova Friburgo, parece haver uma inquietação muito grande, uma busca por algo que não está muito claro o que seja. Você sente isto, também?

GM: Nova Friburgo é uma das cidades mais tradicionais que eu conheço, com grande resistência ao novo. O mito da Suiça brasileira criou uma divisão muito enraizada entre dentro e fora. Os de “Dentro”, no caso, descendentes de suíços ou das famílias tradicionais, que mantém ocasionalmente o poder político. Os de “Fora” são todos os que não se ajustam. Mas como? Temos mais afrodescendentes mestiços com portugueses do que descendentes de suiços. O jovem friburguense está querendo se cosmopolitizar, virar Brasil. Aliás, Friburgo já é uma pequena metrópole, com mais de 200 mil habitantes. Paradoxalmente existe também uma busca por uma cultura alternativa, que é uma coisa que já vem de muitos anos ...

JORNAL LOCAL: ... como Geração Bendita?

GM: Ah! É. Posso chamá-los de “minha geração”, porque conheci quase todo o elenco. Cheguei aqui adolescente em 1968 para estudar na Fundação Getúlio Vargas. Casei-me em Friburgo em 1973 com uma pessoa que é irmã de um dos músicos do filme Geração Bendita. É interessante notar que Friburgo, sendo reduto deste conservadorismo incrível, essa coisa meio medieval de famílias “nobres” com seu séquito obsequioso, servil, sempre teve parte da sua população metida com o novo e o alternativo. Este contraste é uma coisa maravilhosa, ao mesmo tempo difícil e instigante! Enfim, aqui não se é friburguense impunemente.





terça-feira, 10 de agosto de 2010

Diario de Bordo

Há cerca de dois anos voltei para o Brasil depois de passar um quarto
de século viajando pelo Hemisfério Norte.


Ao chegar no aeroporto de Salvador, vindo de
Madrid, uma baiana de um grupo tradicional,
que recepcionava os turistas no saguão de entrada, me colocou
uma fitinha azul do Senhor do Bonfim no pulso
esquerdo. Esta fitinha está comigo até hoje apesar de
bem carcomida.


O desejo que eu fiz não posso revelar, mas
ele está se cumprindo, pouco a pouco.


Vou descrevendo neste blog meus espantos
e choques culturais decorrentes da minha volta.
O momento brasileiro parece um momento que
eu vivi nos idos de 1990, quando em trajeto
contrário me deparei com uma Espanha cheia de contrastes.
Em uma ruela perto de Plaza Mayor vi duas mulheres
vestidas de negro que se cruzavam em direções opostas;
uma jovem punk e uma viúva tradicional;
a Espanha nova, sedenta de cultura européia e a Espanha antiga,
que parecia estar de luto pelo próprio desaparecimento
lento e gradual. A cara de Franco, em 1990, ainda estava nas
moedas de duros (25 pesetas). Um jovem sorriu diante do meu espanto
e me explicou que "o ditador tinha tão pouca importância naquele
momento que a gente nem mesmo se dá ao trabalho de trocar as moedas".


É mais ou menos assim com a presença do Brasil de Ontem
no meio do Brasil de Hoje.


O Brasil de Ontem que vai ficando pra trás no retrovisor,
tem sua imagem estatualizada nos ícones da Tv Globo:
William Bonner, Fátima Bernardes e o indefectível
Galvão Bueno. Até o Jô Soares, antes
tão criativo, hoje tornou-se repetitivo como um papagaio
lesado. O histérico Jabour, os artistas globais turbinados,
Roberto Carlos... meu Deus, Roberto Carlos
50 years later. Ninguém se dá ao trabalho de substituí-los.
Deixam eles se gastarem por si mesmos como as moedas
da época de Franco, como estátuas em jardins públicos.


O Brasil de ontem - um Brasil racista, discriminador, corrupto,
também está presente, ainda. Suas cores e formas cada vez mais
contrastantes (já não conseguem existir na confortável invisibilidade de antes)
vão desaparecendo no retrovisor pouco a pouco,
como se a própria visibilidade recem-adquirida, o olhar público entediado,
fosse uma maresia incômoda, que os corroesse lentamente.


O Brasil de hoje, da diversidade que aponta para o amanhã,
é um Brasil quase anônimo. Ele está no Cultura Viva,  nos pontos de cultura
espalhados por todo o país; a revolução cultural silenciosa, invisível aos olhos
da grande mídia. Uma revolução que é um salto imprevisível no escuro.
Este Brasil está na CUFA, na música de vanguarda paulista, nos CAPs,
no Bolsa Família, nas marchas de orgulho gay, na prova do Enem
e na mão de obra cada vez mais valorizada.
Ele está chegando e se acercando, devagar e forte, por toda a parte.


E é por este cenário dinâmico que eu caminho e lanço o meu olhar
de quem vem de longe. 


Gui Mallon