terça-feira, 10 de agosto de 2010

Diario de Bordo

Há cerca de dois anos voltei para o Brasil depois de passar um quarto
de século viajando pelo Hemisfério Norte.


Ao chegar no aeroporto de Salvador, vindo de
Madrid, uma baiana de um grupo tradicional,
que recepcionava os turistas no saguão de entrada, me colocou
uma fitinha azul do Senhor do Bonfim no pulso
esquerdo. Esta fitinha está comigo até hoje apesar de
bem carcomida.


O desejo que eu fiz não posso revelar, mas
ele está se cumprindo, pouco a pouco.


Vou descrevendo neste blog meus espantos
e choques culturais decorrentes da minha volta.
O momento brasileiro parece um momento que
eu vivi nos idos de 1990, quando em trajeto
contrário me deparei com uma Espanha cheia de contrastes.
Em uma ruela perto de Plaza Mayor vi duas mulheres
vestidas de negro que se cruzavam em direções opostas;
uma jovem punk e uma viúva tradicional;
a Espanha nova, sedenta de cultura européia e a Espanha antiga,
que parecia estar de luto pelo próprio desaparecimento
lento e gradual. A cara de Franco, em 1990, ainda estava nas
moedas de duros (25 pesetas). Um jovem sorriu diante do meu espanto
e me explicou que "o ditador tinha tão pouca importância naquele
momento que a gente nem mesmo se dá ao trabalho de trocar as moedas".


É mais ou menos assim com a presença do Brasil de Ontem
no meio do Brasil de Hoje.


O Brasil de Ontem que vai ficando pra trás no retrovisor,
tem sua imagem estatualizada nos ícones da Tv Globo:
William Bonner, Fátima Bernardes e o indefectível
Galvão Bueno. Até o Jô Soares, antes
tão criativo, hoje tornou-se repetitivo como um papagaio
lesado. O histérico Jabour, os artistas globais turbinados,
Roberto Carlos... meu Deus, Roberto Carlos
50 years later. Ninguém se dá ao trabalho de substituí-los.
Deixam eles se gastarem por si mesmos como as moedas
da época de Franco, como estátuas em jardins públicos.


O Brasil de ontem - um Brasil racista, discriminador, corrupto,
também está presente, ainda. Suas cores e formas cada vez mais
contrastantes (já não conseguem existir na confortável invisibilidade de antes)
vão desaparecendo no retrovisor pouco a pouco,
como se a própria visibilidade recem-adquirida, o olhar público entediado,
fosse uma maresia incômoda, que os corroesse lentamente.


O Brasil de hoje, da diversidade que aponta para o amanhã,
é um Brasil quase anônimo. Ele está no Cultura Viva,  nos pontos de cultura
espalhados por todo o país; a revolução cultural silenciosa, invisível aos olhos
da grande mídia. Uma revolução que é um salto imprevisível no escuro.
Este Brasil está na CUFA, na música de vanguarda paulista, nos CAPs,
no Bolsa Família, nas marchas de orgulho gay, na prova do Enem
e na mão de obra cada vez mais valorizada.
Ele está chegando e se acercando, devagar e forte, por toda a parte.


E é por este cenário dinâmico que eu caminho e lanço o meu olhar
de quem vem de longe. 


Gui Mallon