terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Era um piano de cauda ... e estava aberto!


A dimensão musical do viver infantil.


Aos 6 anos de idade, pela primeira vez na vida, fui colocado perto de um piano.
Os adultos foram para algum lugar dentro da casa e me deixaram esquecido na sala do piano. Era um piano de cauda, negro e esbelto como um cavalo de ra
ça ... e estava aberto.


A casa era de um membro da comunidade adventista que administrava a fábrica Superbom, juntamente com uma escola primária. Eu seria aluno interno dessa escola mas, no exato momento do meu encontro com o piano de cauda ... que estava aberto, eu ainda não sabia de nada disso.

Enquanto minha mãe conversava com a família que iria me adotar pelos próximos seis meses eu fui me aproximando do piano. Enfiei a mão por dentro do instrumento, nos seus intestinos, risquei o dedo indicador pelas cordas e ... Shazam! O piano falou comigo.

Tenho que esclarecer que eu fui filho de mãe solteira, cheio das carências típicas dessa condi
ção. Vivia então, como forma de compensação, em um mundo meio mágico, cercado de visões  e sons alucinatórios. Pois ao ouvir o estranho som intestinal do piano tive uma dessas alucinações infantis: vi, literalmente, pequenos seres que voavam em torno dos sons. Anos mais tarde, na minha adolescência, vivenciei coisa semelhante ao ouvir música sob o efeito de drogas alucinógenas. Mas na minha infância estas "viagens" ainda eram feitas in natura.

Eu assistia televisão e acreditava - sem nenhum problema - que naquela caixa iluminada viviam seres pequenininhos que falavam uma língua estranha e melodiosa, que mais tarde na idade adulta eu iria aprender;  o inglês.



"Sim, o meu cavalo também só falava inglês".


Nunca tive oportunidade de aprender a tocar piano direito, mas desde então a música passou a ser essa outra dimensão na minha vida, algo que me remete ao sonho, à imaterialidade e à comunhão com estes pequenos "seres-entidades" que chamamos de sons.


Gravei discos, vendi discos (no tempo em que discos ainda era algo que se vendia), enfim,  ganhei minha vida soltando seres pequenininhos pelo mundo afora. Sempre acreditei entretanto que a música era essencialmente um sentimento, livre, incomprável como qualquer outro sentimento. Vejo o atual desmoronar da chamada indústria musical como algo natural e inevitável. A música, essa mais subjetiva e abstrata entre as formas de arte, pode resgatar, quem sabe,  algo do humano que está esquecido no viver humano contemporâneo.

Uma música despida de egolatrias, narcisismos e ambições materiais pode conseguir isso.

Infelizmente ainda não consegui produzir essa música redentora, mas não desaprendi a sonhá-la e me deslumbrar com os sons... estes seres mágicos, pequenininhos.

FELIZ 2011!





mp3
 - música de câmara





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 - jazz