O que São Paulo S/A(*) tem a ver com a ministra Ana de Hollanda e com gestão participativa?
* um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos - dirigido pelo paulista Luis Sérgio Person
No dia seguinte à sua posse, na verdade menos de 24 horas depois, a nova Ministra de Cultura Ana de Hollanda já sofria ataques implacáveis nas listas e blogs dos ongueiros do velho regime. O motivo/pretexto? O discurso de posse, onde a ministra expressou sua visão em linguagem metafórica: "a criação será o centro do sistema solar de nossas políticas culturais e do nosso fazer cotidiano. Por uma razão muito simples: não existe arte sem artista". Estes ataques foram gradativamente aparecendo na midia nacional, atingindo seu atual ápice no lamentável episódio das ofensas públicas de Emir Sater a ministra.
É certo que a frase não foi colocada no discurso de posse intencionalmente com o intuito de polemizar, mas a simples menção das palavras “arte” e “artista” sempre causou um certo mal estar num meio cultural hoje dominado por gestores, produtores & ONGs. Sem entrar no mérito da questão do que é arte ou artista, simplesmente referir-se a arte, artista e direitos autorais neste meio é um convite a ser qualificado como adepto do “retrocesso”.
Realmente, depois de se exporem a humilhação de ver a plêiade dos candidatos que apoiavam (supra-sumo da intelectualidade burocrata da velha escola política - na sua maioria com raízes em São Paulo) preteridos por uma artista carioca “outsider” do sistema de política cultural implantado pelo MinC de Juca (o ministro gestor de fato de toda a gestão Lula), a comunidade de ongueiros e lobistas estava já eriçada e predisposta ao confronto desde o momento do anúncio do nome da nova ministra. O que está em questão aqui não são as propostas da nova gestão (que ninguém se deu ao trabalho de esperar serem definidas), mas os oito anos de monopólio ideológico das políticas culturais que se considerava incontestável.
Essa incontestabilidade foi fundamentada no conceito de gestão compartilhada emanado das experiências com orçamento participativo. A constituição de 1988 incorporou o direito ao exercício direto da cidadania como um dos pressupostos do Estado Brasileiro, razão pela qual são crescentes as inovações institucionais e legais tendo em vista ampliar o alcance da participação popular nas políticas públicas. A Constituição de 1988 foi feita dentro deste espírito, tendo inclusive um Plenário Pró-Participação Popular na sua Constituinte. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Na forma como foi praticado nas políticas públicas do MinC-Juca, o problema que este método criou foi o da LEGITIMIDADE DE REPRESENTATIVIDADE. Colocar 100 ou 3000 pessoas num auditório em conferências extremamente desorganizadas, sem um critério jurídico claro de seleção de participantes, em que todos gritam e ninguém escuta; um processo obscuro e não-transparente no qual um redator escreve as propostas que depois vão ser selecionadas e colocadas em papel por outro “relator”, muitas vezes previamente escolhidos ninguem sabe por quem - é uma maneira genial de criar-se uma sensação festiva de participação democrática em meio ao caos. O título do encontro da Teia 2010 em Fortaleza incluia, emblematicamente, a palavra “Tambores”. Eu pessoalmente, tendo como base as cerca de 10 conferências e encontros dos quais participei, considero este método uma forma de estelionato político da democracia. Ou, simplesmente, apropriação indébita de representatividade popular.
A representatividade é um dos baluartes da democracia, pois é impraticável (pelo menos por enquanto) colocar os 190 milhões de brasileiros no Plenário da Câmara ou do Senado. Por isso temos o que chamamos de Democracia Representativa. Esta representatividade segue regras jurídicas claras, enquanto no caso das “plenárias” promovidas pela gestão do antigo MinC os participantes eram convidados entre artistas , produtores, lobistas relacionados aos pontos de cultura ou outros programas, ou seja, dentro de sua própria clientela política. A prática criou um paradoxo jurídico e ético:
O objetivo do Orçamento Participativo é incluir o “povo” nas decisões orçamentárias que os beneficiam mas, na impossibilidade de colocar “o povo” inteiro sentado frente a frente com os seus gestores, busca-se REPRESENTANTES populares. Quando estes representantes, em número reduzido, participando de um processo de decisão seletivo (porque a economia é a ciência da escassez, ou seja, da seleção entre opções econômicas), tomam decisões que beneficiam a si próprios cria-se um problema ético-jurídico: o conflito de interesses. Este princípio ético-legal é a razão pela qual nos editais ou licitações não se permite aos membros das bancas examinadoras premiarem a si próprios, amigos ou parentes.
Passei um ano apontando para este problema nestas reuniões e sendo olhado com curiosidade, como se fosse uma espécie de profeta Gentileza perdido no meio do trânsito na hora do rush.
Em matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, a gestão do PC do B no Ministério dos Esportes é acusada de turbinar caixa e políticos do partido, alegadamente distribuindo 30 milhões a ONGs, dirigentes ou aliados do partido. O jornal percorreu núcleos esportivos no DF, GO, PI, SP e SC e flagrou convênios com entidades de fachada, situações precárias e de abandono. (matéria completa aqui). O partido também geriu importantes recursos públicos do MinC durante a gestão Lula. Que se saiba, até agora, e em nenhum momento, foi feita alguma sindicância que pudesse aprofundar o entendimento sobre os fatos e as consequências das práticas desta “gestão compartilhada” aplicadas improvisadamente nas políticas públicas culturais. Esta auto-avaliação seria uma condição si ne qua non para uma evolução destas políticas públicas. Ao optar-se pelo caminho da incontestabilidade fechou-se o da dialética. E é uma pena, porque política pública também é ciência.
Walmor Chagas como Carlos no filme São Paulo S/A, de 1965 (cult) |
São Paulo S/A, de 1965, mas com enredo situado na década de 50, é um dos filmes mais reveladores e emblemáticos da cinematografia nacional porque denuncia o cínico pragmatismo que a expansão industrial daquele estado impôs ao país, padrões que podemos identificar hoje na cultura política do Brasil. O desenvolvimentismo sem critérios que se implantou desde então continua a dar as cartas tanto na economia, quanto na política e na cultura. Continuamos a optar por dar prioridade (como na década de 50) aos fins antes dos meios; a quantidade ao invés da qualidade. Diante do imenso desafio da problemática ambiental, mais que denunciar, temos que enfrentar estes dogmas pragmáticos.
O filme é ótimo e atual. Recomendo veementemente.
Gui Mallon
músico, escritor e artista plástico
músico, escritor e artista plástico