segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O "ROLEZINHO": EXPRESSÃO POLÍTICA, OBRA DE ARTE e VANDALISMO



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Rolezinho em Santa Catarina
"Dar um rolé" é uma expressão dos anos 70 que significa sair para dar um passeio, ou uma caminhada. Vem da palavra "rolar" e, provavelmente, é inspirada na cultura pop inglesa (rolling). Às vezes tem uma conotação meio marginal, alternativa,  como "se espalhar"; quando uma reunião de pessoas em alguma esquina se desmancha ante a presença iminente da polícia. O "rolezinho" atual, que não tem nada de diminutivo (ver a foto ao lado), ganhou contornos de significação política quando passou a desafiar certas leis invisíveis da sociedade.

 
Interessante lembrar que o processo de transformação social histórico é empírico, lento, gradual; não-homogêneo. A queda de Roma não aconteceu em um dia ou um ano, quando os Hunos a invadiram, por exemplo - por mais simbólica que tenha sido aquela invasão - mas foi um processo que se desenvolveu durante dois séculos. Da mesma maneira, a Lei Áurea não significou que a escravidão no Brasil foi inteiramente abolida em 13 de maio de 1888. Até hoje ainda existem resquícios de escravidão em certas partes isoladas do país e, pior, a mentalidade escravista ainda resiste e é um fator preponderante na cultura brasileira das classes privilegiadas.

 

Não faz muito tempo tínhamos, por exemplo, a instituição da "criada". A "criada" era uma criança pobre que as famílias de melhor situação econômica adotavam informalmente, geralmente sem adoção formal, no papel. As criadas faziam trabalhos domésticos em tempo integral, inclusive fins-de-semana, em troca de casa e comida, convívio e, quando muito, algum estudo (geralmente em escolas públicas de nível inferior às escolas dos filhos da família). A criada foi um tipo de relação complexa, não padronizada, geralmente com variantes "suavemente" criminosas. Mas a instituição da criada abria campo, também, para a existência impune da "escravidão branca", da exploração de mão de obra infantil, da pedofilia, etc. Serve perfeitamente como exemplo das "leis invisíveis" (ou das transgressões invisíveis) a que eu me refiro. A criada servia também para diminuir os salários do serviço doméstico contratado, geralmente informal, com regras trabalhistas "invisíveis" especiais; um campo de atividade que tenta-se regularizar desde o ano passado com a Lei das Domésticas ( Projeto de Lei Complementar nº 302/2013).




Pontos de reflexão sobre o "Rolezinhismo":



1. O rolezinho desmascara, de maneira clara, o Apartheid brasileiro; um Apartheid mais social do que racial (dizem uns), mas que acaba atingindo na prática os afrodescendentes, pois são eles que formam a base da pirâmide social. 

2. Os shopping centers acabam funcionando como áreas de segregação social e racial, através da barreira imposta pelo poder de consumo. O princípio, ou prática, existe a muito tempo. Desde as passagens de "primeira classe" nos navios/trens do século XIX até os aviões; os preços mais altos garantem a exclusividade dos mais ricos.  E é este sentimento de exclusividade que passa a ser ameaçado pelo rolezinho. 


3. A necessidade de exclusividade das classes altas está bem marcada nos condomínios, a forma mais clara de Apartheid. Nos países escandinavos, que têm legislações sociais bem avançadas, propriedade coletiva de portão fechado é proibida. A razão é óbvia: a propriedade coletiva privada não pode se sobrepor as leis nacionais de utilização do solo e território, que garantem livre trânsito dos cidadão.

4.  O rolezinho encontra-se nas fronteiras da lei, como a arte grafite, considerada por muitos simples vandalismo. Artistas contemporâneos utilizam-se muito desta zona "twilight" da lei para chamar atenção e provocar reflexões. O rolezinho pode ser também considerado como uma performance, uma escultura social a la Josef Bueyes, portanto: uma obra de arte.

5. O rolezinho também é uma pequena experiência de avaliação do "gigante adormecido" - a entidade das massas que se levantaram em junho de 2013 - que eu defino no post anterior. Seria uma medição de forças entre este ID coletivo de massas oprimidas e as forças de segurança, para medir o comprimento do "braço da Lei" e, neste sentido, o teste foi vitorioso porque a repressão foi suspensa (exatamente como na questão das passagens de ônibus urbanos ano passado). O movimento atual está sendo então uma pequena escaramuça, um recall, um exercício preparatório para o que nos espera durante a Copa do Mundo deste ano.

6. O rolezinho causa ruído. A questão do volume do som, cujos limites ainda não estão claramente definidos por lei no Brasil, é outro aspecto "twilight" interessante. Quem não se lembra dos Beatles, no auge da fama, sendo parados pela polícia britânica no meio do seu último concerto no teto da Apple em 1969, ato registrado no filme Let it Be? O fato incontestável é que som alto incomoda. Submeter um funkeiro a uma audição diária em 100 decibéis de uma ópera de Puccini certamente seria uma violência auditiva, uma invasão de aura ou do espaço individual. Ou seja: puro vandalismo auditivo. 


Ainda estamos definindo (ou redefinindo) normas básicas de convívio no Brasil, cuja Constituinte tem apenas um quarto de século. O Brasil é um país dinâmico, de vanguarda, que ainda está se constituindo e discutindo conceitos. Liberdade x Lei. Indivíduo x Coletivo. O "rolezinho" é mais um desafio lançado neste caldeirão fervente de conceitos, sempre no limite, sempre à beira de uma explosão. Daí sairá algo novo, a resultante (temporária, sempre) de cinco séculos de tensão social.







sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

2014


Depois de uma longa pausa, volto a este Diario de Bordo, inaugurado em 2010 para descrever minha volta ao Brasil, após 25 anos de auto exílio no exterior. 

 
Em 2014 fez 5 anos desde que cheguei, em 8 de janeiro de 2009, com um projeto aprovado pelo MinC/Funarte de "antão" para (re)iniciar minha vida no país. Apesar de ter baixado em Salvador em julho de 2008, considero esta data como minha volta oficial. São apenas 5 anos, mas as transformações, em todos os níveis, dão a sensação de que se passaram muito mais do que apenas cinco anos. O ano de 2009, visto aqui à distância, de 2014, parece se situar a séculos de distância.



Houve mudanças impossíveis de prever, como a grande catástrofe das chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011, onde moro, que descrevi no post: APOCALIPSE NA SERRA DO RIO


A maior catástrofe natural do país me pegou no miolo da área e me atingiu em cheio, mudando minha vida radicalmente. Em menos de 8 horas, 1000 pessoas haviam morrido ou desaparecido. As águas arrastaram consigo não só vidas físicas, mas muitas certezas e crenças. Desnudou "o rei", no sentido de escancarar para o conhecimento do povo a debilidade de nossas instituições políticas e da nossa infraestrutura social frente a situações de crise. O povo, como em um reflexo psicológico típico de vítimas de trauma, aparentemente já esqueceu. Quem passa pela rua Portugal ou na Praça do Suspiro à noite, se depara com um clima de festa digno das orgias etílicas das "Oktoberfest" bávaras... mas sabemos que nada poderá repor mais a crença que a Serra do Rio embalou por tantos anos de ser uma área privilegiada de moradia.




No plano nacional tivemos as manifestações de 2013. Ninguém poderia prever a extensão, a pluralidade e o alcance do movimento; que em 20 de junho de 2013 alcançou o pico de 1,4 milhão de pessoas nas ruas em cerca de 120 cidades. Esta crise pode ser comparada à catástrofe natural da Serra do Rio, sendo que os atingidos foram, principalmente, os buldogues do sistema: a grande mídia e a classe política. Uma surda batalha política se iniciou nos bastidores da informação e contrainformação sobre os significados das manifestações. 

 

Assim como na catástrofe natural, as vítimas das manifestações - a grande mídia e a classe política - parecem estar sofrendo de uma espécie de amnésia de traumatizados. Esqueceram-se já da imagem aterradora do "gigante adormecido" caminhando pelas ruas das cidades, destruindo carros, lojas e bancos. A crise das manifestações deixou outro rei nú: a crença na solidez do sistema de segurança. O Brasil é um dos países que tem mais polícias: Polícia Militar, Polícia do Exército, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Polícia Ferroviária, Polícia Legislativa, Guarda Municipal. Temos até uma "Polícia Científica", sabiam? Sem contar as inúmeras milícias e empresas de segurança privada.
 


Apesar de todo este aparato, temos um dos maiores índices de corrupção e criminalidade do mundo. Por que tanta força de segurança? Entre os motivos, tão óbvios quanto complexos, um deles se destaca acima dos outros: O Brasil foi construído em cima da mão de obra escrava e hoje detém a oitava posição como país mais desigual do mundo, abaixo apenas da Guatemala na América Latina e seis países africanos. Esperar o que?



O autor, homenageando a
Revolução Francesa
(Cambridge-2013)
Mas estamos evoluindo à duras penas de um Estado que servia apenas para proteger os privilegiados históricos - os descendentes sociais do escravismo - para um Estado na concepção moderna da palavra: um Estado de Direito. Estamos no meio do caminho, nem aqui nem lá, em uma posição de fragilidade. Este ano de 2014 vai ser importante para sabermos se daremos mais uns passos adiante ou para trás. Quem luta pelo retorno de políticas de estado alinhadas à velha estrutura hierárquica herdada do escravismo, aposta na utopia do desenvolvimentismo em um planeta cujos recursos naturais estão se exaurindo.

O fator imprevisível é que o "gigante adormecido" provou o gosto do poder; foi às ruas sem prévia permissão, forçou uma "agenda positiva" no Congresso, provou que a Grande Mídia não monopoliza a informação nem a formação de ideias e que todas as forças de segurança do Brasil talvez não sejam suficientes para contê-lo. Este é apenas um desdobramento da grande onda libertária que iniciou-se na Revolução Francesa, inundou o século XX, definindo-o, e desembocou neste século em grandes manifestações pelo mundo afora.



Estranho que nenhum historiador tenha feito até agora a óbvia relação entre o Brasil atual e a sociedade francesa pré-revolucionária, antes de 1789. Também lá uma classe privilegiada vivia alienada da realidade social e política, cercada por um muro de desigualdade social; produto de séculos de imobilidade social. Também lá a repressão mostrou-se impotente desde as primeiras manifestações. 



Na numerologia, os anos de 1789 e 2014 são reduzidos ao número 7. Número da Criação, indica o processo de passagem do conhecido para o desconhecido.

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