domingo, 12 de outubro de 2014

O PAPEL DA GLOBO NAS ELEIÇÕES 2014

(English text bellow)
 

No verão parisiense me deparo nos Jardins de Luxemburgo com uma cópia da Estátua da Liberdade. O seu braço esquerdo carrega um livro onde aparece a mística data: "15 de Novembro de 1889". Qualquer brasileiro pode se enganar e pensar que a estátua foi levantada em homenagem à instauração da República no Brasil. Mas, não, é uma coincidência. Esta é a data em que a primeira versão/esboço em bronze do escultor Bartholdi foi inaugurada naquele jardim.

Bertrand Russel, em uma famosa "Mensagem ao Futuro", durante uma entrevista dada à BBC nos anos 50, recomenda a nós, os seres humanos do futuro, que, quando quiséssemos analisar a realidade, tentássemos evitar a tentação de traduzir os fatos como queremos  que eles fossem, mas sim, que tentássemos nos  concentrar nos fatos como eles são em si. Esta é uma regra de ouro não só para filósofos e cientistas, mas também para os órgãos de informação pública, a imprensa. No caso da mídia brasileira, esta regra parece que foi completamente esquecida. Ainda me lembro de jornais como o Jornal do Brasil ou Correio da Manhã na década de 60. Mesmo sob a severa censura da ditadura militar, estes jornais conseguiam manter uma dignidade que hoje, com toda a liberdade que vivemos, tornou-se rara. Como estratégia editorial, definitivamente, não faz mais parte da prática do jornalismo no Brasil. Isto, sim, é um fato. Os maiores jornais brasileiros renderam-se aos interesses políticos do partido neoliberalista, PSDB, baixando seu padrão de ética ao nível folhetinesco político que existia no século XIX.

O poder da TV GLOBO, apesar de seus índices de audiência cada vez menores, mantém-se mais ou menos inalterado no quesito "articulações institucionais"; onde tenta impor uma espécie de consenso monolítico, na mídia, no Congresso, no Jurídico e em certas instituições culturais não governamentais de peso, através da intimidação, sabotagem e manipulação de informação. Mas a GLOBO parece estar vivendo uma crise de identidade. Em 2013, por exemplo, vieram a público declarar que "foi errado apoiar a ditadura". Uma declaração que veio um pouco tarde (49 anos depois), após terem sido o órgão de imprensa porta-voz da ditadura e, consequentemente, o mais beneficiado economicamente pelo regime ditatorial, saindo da posição de terceiro jornal local no Rio de Janeiro - justamente atrás dos dois jornais acima mencionados - para o de maior conglomerado de comunicações do Brasil.

O que vemos hoje é uma organização midiática que surgiu e foi estruturada para ser parcial e apoiar grupos políticos autoritários e golpistas, e que não consegue se adaptar aos novos tempos e mudar suas estratégias após a redemocratização. Ao contrário, a GLOBO continuou a interferir de maneira escandalosa e antiética na política nacional, como ficou demonstrado no lamentável episódio da edição do debate entre Lula e Collor de 1989, como eles mesmo admitiram. Mais recentemente, a intervenção da GLOBO pode ser sentida de maneira clara na espetacularização do processo do mensalão no STF, nas suas manchetes imparciais (vejam o manchetômetro) e nas recentes publicações seletivas dos depoimentos de escândalos de corrupção na Petrobrás - que deveriam ser feitos sob sigilo de justiça. A escolha da ocasião para a publicação destes depoimentos não foi casual.

A questão que permanece é: Qual será o futuro da GLOBO*?
Virão, talvez, pedir desculpas novamente, daqui a alguns anos, pela interferência feita ao processo democrático brasileiro em 2014, quando o estrago já foi feito de maneira irreversível?

Gui Mallon


* para maiores informações sobre a GLOBO. ___________



ROLE OF MEDIA MONOPOLY IN THE PRESIDENTIAL ELECTIONS​ IN BRAZIL
 
I'd like to suggest a closer look into the Brazilian elections. It would be interesting to know your perspective, from an independent European media, about the events in Brazil right now.  
It is of public knowledge the fact that the GLOBO organisations form the largest media monopoly in Latin America. GLOBO became an empire/monopoly thanks to the sponsoring of the military presidents under 25 years of a repressive dictatorship regime, from a position of a third local news-paper in Rio de Janeiro to the one as the largest media conglomerate in the country. In those iron years, Globo acted as a major propaganda device for the military regime.

(As an example, a typical Globo tv-program from 1975:
https://www.youtube.com/watch?v=YGiQXNf02eQ)



Recently, after
​ ​
the big manifestations that took the streets of Brazil in 2013, they admitted in public their "mistake" concerning their support to the Brazilian dictatorship. As you can see, they do that "au passant", as it was a small graphic error in the previous newspaper edition:
https://www.youtube.com/watch?v=9OCvABy2pBg


But the fact is that, since the democratisation (1985), they have ostensibly manipulated information to favour their political group, always closer to Washington and to neoliberal policies. In 1989, they outrageously edited a debate between the two presidential candidates Lula and Collor, to favour Collor, who won the elections. This is a fact of public knowledge and it was also admitted by Globo:
Now, Globo, together with their allies A Folha de São PauloRevista Veja e Estadão, are orchestrating the most extensive degrading campaign against the Brazilian Labour Party (of the ruling president Dilma) trying to improve the chances of victory for their candidate Aécio Neves. In the last months, but specially in the last days, their front-page headlines carry nothing but accusations - sometimes, as yesterday, eight headlines. Accusation in the framework of this electoral dispute becomes quickly interpreted as summary condemnations.  

Will Globo also ask forgiveness for their actual actions in a few years, when the damage to democracy has already been irretrievable?

​Gui Mallon

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Viva Suassuna! Além do "Teatro Sem Nome da Praça Sem Banco"

A des-homenagem feita à Suassuna por Nova Friburgo foi uma das páginas mais bizarras da história deste país. O teatro que deveria levar seu nome, hoje está vazio de sentidos. Vazio, e de luto. Neste poema, "Teatro Sem Nome da Praça Sem Banco", dedicado à Suassuna, ele aparece como personagem: Jagunço Fonseca. Viva Suassuna! O corpo vai, mas o legado fica.

TEATRO SEM NOME
DA PRAÇA SEM BANCO
(Ourives do Invisível)


Ah, a democracia
que gracinha ...
morre de fome
de falar em meu nome


Na praça que deixou de ter banco
jardim, pirulito ou passarim
(porque comprada por alguém
cujo nome é Sou Quem Tem)
levantaram o dragão de aço
que cospe gente pro além


Lá pro alto do espaço
onde todos sonham
que são Deus
(ou europeus)
Uma vez morta
uma praça...
quem se importa?


Mas o povo não esquece
e levanta um teatrão
pertinho da igreja
bem ao lado do dragão

Mas o povo se esquece
que é dono do teatro
da pracinha e tudo mais
porque memória de povo é curta
pra lembrar tudo que faz


Ah, a democracia
que gracinha ...
morre de fome
de falar em meu nome

“Teatro Jagunço Fonseca”,
propôs um fala-em-meu-nome
porque Jagunço fez revolução
sem faca nem tiro,
só com lápis, papel
e um coração

“Teatro Ciclano Beltrano”
propôs um fala-em-teu-nome
Porque Ciclano, sem desdém,
era amigo dessa gente
que não é amiga de ninguém

“Teatro Sem Nome”,
propôs o artista
porque teatro é fantasia,
um faz de conta interativo
Vamos poupar a democracia
já tão traída em alto nível
e se aqui não somos nada
lá, naquele palco,
seremos ourives do invisível


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Perder, Ganhar, Viver

Perdemos Neymar, mas temos Drummond

Hoje quero que um mestre da palavra fale por mim, por nós.

Que bom que nem tudo pode ser representado pelo futebol ou pela música, pela imagem ou pela palavra. E feliz é aquele que pode mudar de foco (e dimensão) e pode ser confortado pelos incomensuráveis recursos culturais acumulados na história humana. Há muito a dizer sobre a emblemática derrota da seleção contra a Alemanha ontem por 7x1, que talvez signifique o fim de uma era de ingenuidade no futebol brasileiro. Mas hoje eu busco conforto nas palavras de um mestre da palavra.

Esta crônica foi escrita em julho de 1982, após a derrota do Brasil para a Itália por 3x2:

  Perder, Ganhar, Viver

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…

Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.


Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.


Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.


E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?

terça-feira, 1 de abril de 2014

Primeiro de Abril de 1964: meio século de mentiras

Não foi 31 de março, foi 1 de abril
Não foi Revolução, foi Golpe
Não foi golpe militar, foi golpe da CIA
Não foi necessário coragem, apenas oportunismo e crueldade



 

Eu tinha 10 anos de idade e morava em Itaquera, na época um bucólico subúrbio de São Paulo. A família, descendentes de trabalhadores braçais italianos conservadores, foi totalmente favorável ao golpe militar desde o início. Lembro-me apenas de ter ouvido, de diversos personagens: "Derrubaram o Jango? Para de brincadeira ô meu, quer me dar o GOLPE do PRIMEIRO de abril?" Foi assim que estas duas coisas, o "golpe" e o "1 de abril" se uniram de maneira inseparável no meu imaginário infantil. Hoje, defensores do golpe afirmam que foi a "revolução de 31 de março".


Para se fazer uma revolução é necessário um certo desprendimento; a coragem de quem está preparado para morrer por um ideal. Simplesmente não foi o caso. Nenhuma bala, nenhuma resistência, nenhum perigo. Tudo muito previsível e previamente arranjado; desde o artigo de 3 de março de 1964 no N.Y.Times afirmando que Os Estados Unidos não mais punirão as juntas militares por derrubarem governos democráticos na América Latina, uma espécie de salvo conduto, até a suposta "união das tropas para evitar derramamento de sangue". A maioria dos generais do exército já estava do lado dos golpistas. A Marinha Americana (Frota do Caribe) e a CIA estavam do lado dos golpistas. Não foi difícil obter o "apoio" do Congresso com as ameaças de cassações e, muito antes, quando o governo Lyndon Johnson injetou milhões e milhões de dólares na "Operação Brother Sam", que o embaixador estadunidense Lincoln Gordon utilizou e descreveu eufemisticamente como "encorajamento de sentimentos democráticos e anti-comunistas no Congresso, nas forças armadas, em sindicatos e grupos de estudantes amigáveis, igrejas e empresas". Empresas? A imprensa já estava amplamente contra o presidente João Goulart e a favor dos seus anunciantes.

Uma coalizão tão sensacional dispensaria o apoio do povo, que na verdade nem entendia o que estava acontecendo; pensava-se que era dia 1 de abril. E acredito que esta data foi escolhida estrategicamente, para confundir o povo e impedi-lo de acordar e reagir a tempo. Este foi um dos poucos atos inteligentes da ditadura, que era extremamente brucutu e burra. Soube de gente que foi presa porque tinha em casa qualquer livro onde estivesse a palavra "manual" no título, que os "corajosos" membros dos órgãos de repressão confundiam nervosamente com o "Manual de Guerrilha Urbana" do Marighella. Meu Deus!






O povo só foi acordar 4 anos depois, em 1968. Já era tarde. Já estava acéfalo, com seus grandes líderes mortos ou expulsos do país. O projeto de acefalia nacional foi uma das maiores realizações da ditadura militar, resultado do Golpe da CIA, do qual nos ressentimos até os dias de hoje.

Lincoln Gordon depois se arrependeu de ter colocado o Brasil nas mãos de gente tão incompetente. Em entrevista à rede ABC, em junho de 1979, Gordon confessou sentir-se "chocado com os rumos da ditadura brasileira", ele não esperava que todo o capital injetado na região (!!) fosse "literalmente para o ralo", e que o Brasil "estava mergulhando numa grande recessão, pois a política econômica se mostrou desastrosa, apesar da modernização do parque industrial".

Hoje, passados 50 anos daquela fatídica data, após a recente instauração da Comissão Nacional da Verdade - que está desvendando muitos fatos - o sentimento que toma conta do país é que a impunidade destes torturadores tornou-se insuportável e inaceitável. Vejam a maneira acintosa como estes antigos torturadores descrevem suas ações, com orgulho. O Brasil vai ter que enfrentar seu passado, como fizeram outros países, e espremer o pus desta ferida histórica, ou corremos o risco de vivermos tudo outra vez.

E para os que ainda defendem a "revolução de 31 de março", na verdade, Golpe do 1 de Abril, recomendo que leiam um pouco a história do Brasil, como escrita pelos funcionários do setor de documentação histórica do Congresso estadunidense, uma fonte considerada por eles, certamente,  acima de qualquer suspeita.

quarta-feira, 12 de março de 2014

A MIRAGEM

Uma miragem não é apenas a evocação da cena clássica, cinematográfica, dos sedentos - náufragos ou perdidos no deserto - visualizando um oásis inexistente, com suas cachoeiras se espumando em alguma lagoa azul e cristalina envolvida por uma cama de areia amarela e fina. A miragem, como materialização de um desejo profundo e inalcançável, também pode ocorrer no cotidiano, com maior ou menor intensidade. A miragem é parte da realidade contemporânea.

A miragem também é um poderoso recurso de produção artística. Ontem eu era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones, e continuo amando, mas não com a intensidade de ontem. O “efeito miragem” simplesmente desvaneceu-se com o tempo.


Alguma miragem deve estar por trás das primeiras pinturas pré-históricas, pré-rupestres, pré-figurativas. Como explicá-las de outra forma? E aqui o surgimento da arte se confunde com o das religiões. Arte também é uma forma de religião, uma e outra são diferentes formas de miragem.

Uma vez, quando ainda era professor de violão no Conservatório Brasileiro de Música em Friburgo, fui chamado pelo pai de um aluno, exasperado porque o filho havia decidido fazer vestibular para Música. O homem era militar aposentado e ainda estávamos em plena ditadura. Seu filho tinha o lábio leporino e o comportamento típico dos que são discriminados pela aparência, com dificuldades nos estudos, inclusive nos estudos de violão. Assim que entrei na casa o pai lançou-me a pergunta terrível: “Diga-me verdadeiramente, professor, esse menino terá condições de se sustentar com a música”? A pergunta me pareceu especialmente cruel porque se referia indiretamente à aparência física do menino. Eu respondi: “Talvez, senhor”, e prossegui: “Poderá, muito provavelmente, nunca ter dinheiro para comprar um carro ou uma casa. Ou, quem sabe, poderá ser o membro mais rico da sua família. Mas nada disso importa. Música não é uma profissão, mas uma vocação; é como ser padre. E se ele tiver a vocação para ser músico, nada o impedirá de sê-lo”. E saí. E é mesmo verdade: vejam os estudantes de música clássica como caminham diferente, com seus óculos de graus, a pele carente de sol: parecem, de fato, sacerdotes de uma seita fechada, exclusiva.

Vocês querem saber o final da história? O pai morreu não muito tempo depois do nosso último encontro. E assim como o pai de Salieri – o músico concorrente de Mozart no filme homônimo - deixou uma gorda herança que permitiu ao meu aluno seguir seus estudos. Esse “menino” fez mestrado de violão no Brasil e a última notícia que eu ouvi dele é que estava fazendo doutorado no Japão. Não sei quanto tempo durou a miragem que ele perseguia.

Também existem pessoas que aparecem e desaparecem da vida da gente. O melhor amigo que eu tive, aquele com quem eu podia dialogar sobre qualquer assunto sem medo de ser incompreendido, ainda está vivo. Mas este amigo, com a idade, decidiu fechar-se dentro de si mesmo. Nossa amizade foi uma miragem maravilhosa e razoavelmente duradoura. Outras pessoas que já se foram deste mundo parecem desvanecer-se com a distância do tempo, como miragens. Mas nada compara-se a dor da perda de uma pessoa que ainda está viva, só que viva na forma de uma miragem desvanecida. Há os mortos que ainda estão vivos; os eternizados pelo amor do povo: Luiz Gonzaga, por exemplo. E há os vivos que já estão mortos. Encontrá-los é dolorosamente espantoso, como se encontrássemos fantasmas, zumbis, que acordam dos sonhos para invadir o cotidiano.

Mas, na miragem que se desvanece pouco à pouco, deve haver um momento qualquer, entre a certeza e a dúvida, como no encontro do Sol e da Lua ao entardecer – ambos rumo à direções opostas – um momento mágico entre a realidade e o sonho (ou miragem), que é o território onde a Arte e o Amor surgiram. Ou como explicaríamos a intensidade louca das cores junto à perfeita lógica estética das linhas das pinturas de Altamira? Como explicar o êxtase que a arte e o amor provocam?

Não importa que a miragem seja algo irreal e transitório. O que importa é o resultado deste delírio; sua materialização. Assim também há coisas na história e na vida, aparentemente fracassadas, inócuas, falsas, que (re)floresceram em outro momento, mais belas e perenes; ressignificadas pelo espírito ou pelo sentimento humano. Amém.

TRILHA SONORA: THE MIRAGE –  composta em 2010. Gravada na roça na noite de 11 de março de 2014. Ouçam, no fundo, o bater do relógio e os insetos noturnos. Ouçam a Lua Crescente que boia resplandecente sobre as montanhas de estrelas ...

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

UM ANO SEM NELMO

Um ano sem o Nelmo.
O que dizer?
A morte é o que une todos no mesmo destino comum:
o pó inexistencial.

"Quero ver quem separa o pó do rico do meu..." dizia uma velha canção de Gilberto Gil.

Um ano sem o Nelmo. O que dizer? A ausência do Nelmo é absurdamente emblemática quando pensamos na triste cidade de Nova Friburgo na serra do Rio de Janeiro.


Vamos imaginar que o Nelmo, de alguma forma, personificasse aquilo que todo bom palhaço simboliza: uma alegria de um tempo ingênuo, que sempre morre quando deixamos de acreditar em Papai Noel, mas que sempre há de renascer enquanto existir um bacurauzinho qualquer neste mundo. É isto que o palhaço significa. Uma alegria de viver gratuita. Gratuita porque ingênua, ou ingênua porque gratuita...

Enfim, gente boa. Gente do Bem.
Coisa rara. Jóia rara.
Saudades imensas de ti Nelmo...

Deixo aqui um link para uma valsinha que eu fiz pro Nelmo em janeiro do ano passado. Esta música não foi feita pra me promover, mas do fundo do coração por amor a um amigo, tanto que só agora divulgo esta peça. Não é um requiém, não. É uma música até alegrinha, pontuada por uns momentos de tristeza e reflexão calma. Acho que é a cara do Nelmo. Abraços a todos que gostam do Nelmo!

https://soundcloud.com/gui-mallon/nelmo-waltz

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O "ROLEZINHO": EXPRESSÃO POLÍTICA, OBRA DE ARTE e VANDALISMO



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Rolezinho em Santa Catarina
"Dar um rolé" é uma expressão dos anos 70 que significa sair para dar um passeio, ou uma caminhada. Vem da palavra "rolar" e, provavelmente, é inspirada na cultura pop inglesa (rolling). Às vezes tem uma conotação meio marginal, alternativa,  como "se espalhar"; quando uma reunião de pessoas em alguma esquina se desmancha ante a presença iminente da polícia. O "rolezinho" atual, que não tem nada de diminutivo (ver a foto ao lado), ganhou contornos de significação política quando passou a desafiar certas leis invisíveis da sociedade.

 
Interessante lembrar que o processo de transformação social histórico é empírico, lento, gradual; não-homogêneo. A queda de Roma não aconteceu em um dia ou um ano, quando os Hunos a invadiram, por exemplo - por mais simbólica que tenha sido aquela invasão - mas foi um processo que se desenvolveu durante dois séculos. Da mesma maneira, a Lei Áurea não significou que a escravidão no Brasil foi inteiramente abolida em 13 de maio de 1888. Até hoje ainda existem resquícios de escravidão em certas partes isoladas do país e, pior, a mentalidade escravista ainda resiste e é um fator preponderante na cultura brasileira das classes privilegiadas.

 

Não faz muito tempo tínhamos, por exemplo, a instituição da "criada". A "criada" era uma criança pobre que as famílias de melhor situação econômica adotavam informalmente, geralmente sem adoção formal, no papel. As criadas faziam trabalhos domésticos em tempo integral, inclusive fins-de-semana, em troca de casa e comida, convívio e, quando muito, algum estudo (geralmente em escolas públicas de nível inferior às escolas dos filhos da família). A criada foi um tipo de relação complexa, não padronizada, geralmente com variantes "suavemente" criminosas. Mas a instituição da criada abria campo, também, para a existência impune da "escravidão branca", da exploração de mão de obra infantil, da pedofilia, etc. Serve perfeitamente como exemplo das "leis invisíveis" (ou das transgressões invisíveis) a que eu me refiro. A criada servia também para diminuir os salários do serviço doméstico contratado, geralmente informal, com regras trabalhistas "invisíveis" especiais; um campo de atividade que tenta-se regularizar desde o ano passado com a Lei das Domésticas ( Projeto de Lei Complementar nº 302/2013).




Pontos de reflexão sobre o "Rolezinhismo":



1. O rolezinho desmascara, de maneira clara, o Apartheid brasileiro; um Apartheid mais social do que racial (dizem uns), mas que acaba atingindo na prática os afrodescendentes, pois são eles que formam a base da pirâmide social. 

2. Os shopping centers acabam funcionando como áreas de segregação social e racial, através da barreira imposta pelo poder de consumo. O princípio, ou prática, existe a muito tempo. Desde as passagens de "primeira classe" nos navios/trens do século XIX até os aviões; os preços mais altos garantem a exclusividade dos mais ricos.  E é este sentimento de exclusividade que passa a ser ameaçado pelo rolezinho. 


3. A necessidade de exclusividade das classes altas está bem marcada nos condomínios, a forma mais clara de Apartheid. Nos países escandinavos, que têm legislações sociais bem avançadas, propriedade coletiva de portão fechado é proibida. A razão é óbvia: a propriedade coletiva privada não pode se sobrepor as leis nacionais de utilização do solo e território, que garantem livre trânsito dos cidadão.

4.  O rolezinho encontra-se nas fronteiras da lei, como a arte grafite, considerada por muitos simples vandalismo. Artistas contemporâneos utilizam-se muito desta zona "twilight" da lei para chamar atenção e provocar reflexões. O rolezinho pode ser também considerado como uma performance, uma escultura social a la Josef Bueyes, portanto: uma obra de arte.

5. O rolezinho também é uma pequena experiência de avaliação do "gigante adormecido" - a entidade das massas que se levantaram em junho de 2013 - que eu defino no post anterior. Seria uma medição de forças entre este ID coletivo de massas oprimidas e as forças de segurança, para medir o comprimento do "braço da Lei" e, neste sentido, o teste foi vitorioso porque a repressão foi suspensa (exatamente como na questão das passagens de ônibus urbanos ano passado). O movimento atual está sendo então uma pequena escaramuça, um recall, um exercício preparatório para o que nos espera durante a Copa do Mundo deste ano.

6. O rolezinho causa ruído. A questão do volume do som, cujos limites ainda não estão claramente definidos por lei no Brasil, é outro aspecto "twilight" interessante. Quem não se lembra dos Beatles, no auge da fama, sendo parados pela polícia britânica no meio do seu último concerto no teto da Apple em 1969, ato registrado no filme Let it Be? O fato incontestável é que som alto incomoda. Submeter um funkeiro a uma audição diária em 100 decibéis de uma ópera de Puccini certamente seria uma violência auditiva, uma invasão de aura ou do espaço individual. Ou seja: puro vandalismo auditivo. 


Ainda estamos definindo (ou redefinindo) normas básicas de convívio no Brasil, cuja Constituinte tem apenas um quarto de século. O Brasil é um país dinâmico, de vanguarda, que ainda está se constituindo e discutindo conceitos. Liberdade x Lei. Indivíduo x Coletivo. O "rolezinho" é mais um desafio lançado neste caldeirão fervente de conceitos, sempre no limite, sempre à beira de uma explosão. Daí sairá algo novo, a resultante (temporária, sempre) de cinco séculos de tensão social.







sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

2014


Depois de uma longa pausa, volto a este Diario de Bordo, inaugurado em 2010 para descrever minha volta ao Brasil, após 25 anos de auto exílio no exterior. 

 
Em 2014 fez 5 anos desde que cheguei, em 8 de janeiro de 2009, com um projeto aprovado pelo MinC/Funarte de "antão" para (re)iniciar minha vida no país. Apesar de ter baixado em Salvador em julho de 2008, considero esta data como minha volta oficial. São apenas 5 anos, mas as transformações, em todos os níveis, dão a sensação de que se passaram muito mais do que apenas cinco anos. O ano de 2009, visto aqui à distância, de 2014, parece se situar a séculos de distância.



Houve mudanças impossíveis de prever, como a grande catástrofe das chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011, onde moro, que descrevi no post: APOCALIPSE NA SERRA DO RIO


A maior catástrofe natural do país me pegou no miolo da área e me atingiu em cheio, mudando minha vida radicalmente. Em menos de 8 horas, 1000 pessoas haviam morrido ou desaparecido. As águas arrastaram consigo não só vidas físicas, mas muitas certezas e crenças. Desnudou "o rei", no sentido de escancarar para o conhecimento do povo a debilidade de nossas instituições políticas e da nossa infraestrutura social frente a situações de crise. O povo, como em um reflexo psicológico típico de vítimas de trauma, aparentemente já esqueceu. Quem passa pela rua Portugal ou na Praça do Suspiro à noite, se depara com um clima de festa digno das orgias etílicas das "Oktoberfest" bávaras... mas sabemos que nada poderá repor mais a crença que a Serra do Rio embalou por tantos anos de ser uma área privilegiada de moradia.




No plano nacional tivemos as manifestações de 2013. Ninguém poderia prever a extensão, a pluralidade e o alcance do movimento; que em 20 de junho de 2013 alcançou o pico de 1,4 milhão de pessoas nas ruas em cerca de 120 cidades. Esta crise pode ser comparada à catástrofe natural da Serra do Rio, sendo que os atingidos foram, principalmente, os buldogues do sistema: a grande mídia e a classe política. Uma surda batalha política se iniciou nos bastidores da informação e contrainformação sobre os significados das manifestações. 

 

Assim como na catástrofe natural, as vítimas das manifestações - a grande mídia e a classe política - parecem estar sofrendo de uma espécie de amnésia de traumatizados. Esqueceram-se já da imagem aterradora do "gigante adormecido" caminhando pelas ruas das cidades, destruindo carros, lojas e bancos. A crise das manifestações deixou outro rei nú: a crença na solidez do sistema de segurança. O Brasil é um dos países que tem mais polícias: Polícia Militar, Polícia do Exército, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Polícia Ferroviária, Polícia Legislativa, Guarda Municipal. Temos até uma "Polícia Científica", sabiam? Sem contar as inúmeras milícias e empresas de segurança privada.
 


Apesar de todo este aparato, temos um dos maiores índices de corrupção e criminalidade do mundo. Por que tanta força de segurança? Entre os motivos, tão óbvios quanto complexos, um deles se destaca acima dos outros: O Brasil foi construído em cima da mão de obra escrava e hoje detém a oitava posição como país mais desigual do mundo, abaixo apenas da Guatemala na América Latina e seis países africanos. Esperar o que?



O autor, homenageando a
Revolução Francesa
(Cambridge-2013)
Mas estamos evoluindo à duras penas de um Estado que servia apenas para proteger os privilegiados históricos - os descendentes sociais do escravismo - para um Estado na concepção moderna da palavra: um Estado de Direito. Estamos no meio do caminho, nem aqui nem lá, em uma posição de fragilidade. Este ano de 2014 vai ser importante para sabermos se daremos mais uns passos adiante ou para trás. Quem luta pelo retorno de políticas de estado alinhadas à velha estrutura hierárquica herdada do escravismo, aposta na utopia do desenvolvimentismo em um planeta cujos recursos naturais estão se exaurindo.

O fator imprevisível é que o "gigante adormecido" provou o gosto do poder; foi às ruas sem prévia permissão, forçou uma "agenda positiva" no Congresso, provou que a Grande Mídia não monopoliza a informação nem a formação de ideias e que todas as forças de segurança do Brasil talvez não sejam suficientes para contê-lo. Este é apenas um desdobramento da grande onda libertária que iniciou-se na Revolução Francesa, inundou o século XX, definindo-o, e desembocou neste século em grandes manifestações pelo mundo afora.



Estranho que nenhum historiador tenha feito até agora a óbvia relação entre o Brasil atual e a sociedade francesa pré-revolucionária, antes de 1789. Também lá uma classe privilegiada vivia alienada da realidade social e política, cercada por um muro de desigualdade social; produto de séculos de imobilidade social. Também lá a repressão mostrou-se impotente desde as primeiras manifestações. 



Na numerologia, os anos de 1789 e 2014 são reduzidos ao número 7. Número da Criação, indica o processo de passagem do conhecido para o desconhecido.

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